21 fevereiro, 2014

Kiev a Ferro e Fogo

KIEV A FERRO E FOGO

Kiev está a ferro e fogo desde o dia 18 de Fevereiro. A luta pelo poder na Ucrânia agudiza-se, as posições extremaram-se, a violência ameaça generalizar-se.


Cenário dantesco no centro de Kiev.

1- Tal como já foi referido em Tempos Interessantes (“Sem Futuro” em http://tempos-interessantes.blogspot.pt/2014/01/sem-futuro.html) , o Presidente Yanukovich foi fraco na avaliação, controle e resolução dos protestos. Falhou em toda a linha e agora está encostado à parede.

2- A oposição já há muito que não disfarça que está a efectuar um assalto ao poder. Goste-se ou não do poder instituído, ele decorre de eleições, mas para a oposição ucraniana vale tudo para capturar o poder com urgência.

3- Alguém acredita que meses de manifestações, ocupações e violência se devem à não assinatura de um acordo comercial?

4- Há países e governantes que já estão a fazer o papel de virgens ofendidas novamente, com destaque para a Polónia e o seu Primeiro-Ministro, como se fosse viável para qualquer país a situação que se tem vivido em Kiev.

Deixo algumas perguntas para reflexão:

Que país toleraria a ocupação de uma praça importante no centro da capital durante meses?
Que país toleraria a ocupação, saque e destruição de edifícios públicos?
Que país toleraria ataques à polícia com bombas incendiárias e outras armas do combate urbano?
Que país toleraria que a oposição e manifestantes sitiassem as sedes do poder instituído?
Que país toleraria rendições de forças policiais e saques de depósitos de armas?
Que país toleraria tudo o que tem passado na Ucrânia desde Novembro sem recorrer à força policial?

Talvez….a Líbia? A Ucrânia???


A Ucrânia em crise.
in STRATFOR em http://www.stratfor.com/

Posto isto, neste momento o poder parece estar perto da dissolução. As sucessivas aberturas à oposição têm sido rejeitadas. As tentativas de solução do problema via repressão das manifestações têm sido inconsequentes e como tal falham e encorajam ainda mais os manifestantes. O Presidente vacila perante as pressões externas e aceita como mediadores 3 potências estrangeiras que lhe são hostis: Alemanha, Polónia e França.

Perante uma realidade em fluxo permanente e uma torrente de informações, desinformações e rumores difíceis de filtrar e destrinçar, é particularmente difícil prognosticar o curso futuro da Ucrânia. Mesmo assim, do meu ponto de vista, as tendências que se desenham são:

            * A desagregação do poder estabelecido a curto prazo.

            * O protagonismo das forças radicais, a maioria das quais violenta.

* Fracturas, até agora incipientes, dentro do próprio país entre regiões com projectos e preferências diferentes.

* Um incremento da influência de países como a Alemanha e a Polónia no país.

* O aumento das probabilidades de retaliações por parte da Rússia.

Todas estas tendências incorporam riscos enormes para o futuro da Ucrânia. Estão em jogo a sua coesão geográfica e política; está em risco o funcionamento do seu sistema político; e está em grave risco a situação económica e financeira ucraniana, que já era grave antes da crise.

Yanukovich está no estado do boxeur que cambaleia no ring atordoado na iminência do KO. O que acontecerá quando tombar de vez e não sobreviver à contagem, é a grande questão que a Ucrânia enfrenta. Entretanto, Kiev continua a ferro e fogo.


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“BATTLEGROUND OF EASTERN EUROPE”, 06/02/2014 em

“SEM FUTURO”, 31/01/2014 em


6 comentários:

Sergio Lira disse...

Rui, desta vez discordo em absoluto contigo. Nenhum País toleraria tais coisas... se fosse um verdadeiro PAÍS, ou seja, um sítio bem frequentado onde a Nação e o Estado se conjugam, onde há mesmo “País” (não por exemplo o caso tuga, onde o “País” está muito melhor e as pessoas muito pior... não, não é risível, é exactamente aqui que está o cerne do problema), dizia, se fosse um verdadeiro PAÍS, não, não seria tolerável. Se a polícia quisesse, se o exército quisesse, certamente matariam todos os manifestantes, como em Tiananmen... não era preciso muito: qualquer arma pesada a disparar durante 10 minutos, ou qualquer morteiro de 60mm resolveriam o problema. Mas não, e ainda bem que não, apesar de tudo e de tantos mortos (bom, no Egipto morreram muitos mais e não vi tanta choradeira). O facto é que em Kiev está(va?) a semente já germinada de guerra civil, não de manifestações ou de protestos mais ou menos violentos. Pelas imagens é fácil verificar que quem organizava os protestos sabia de guerrilha urbana, sabia fazer máquinas de guerra artesanais, sabia fazer fogo-grego, etc. etc. Há imagens de armas de caça grossa com miras telescópicas a serem usadas pelos "manifestantes" - ora não seria para fazer cócegas aos polícias. Percebe-se bem que muitas daquelas pessoas estavam dispostas a morrer ali, se a tanto se chegasse. Portanto só havia duas alternativas para o “poder”: ou matar aquela gente toda, depressa e bem de preferência; ou ceder. Não vais certamente argumentar em favor da primeira. Recordas as manifestações em Leipzig no outono de 1989? nas forças policiais destacadas para os conter estavam concentrados elementos da Stasi que tinham por ocupação normal fazer tiro aos patos no muro de Berlim – esperavam os dirigentes que essa ocupação anterior os preparasse para abater sistematicamente os manifestantes. Houve alguns recontros violentos mas não definitivos e as manifestações só cresceram, em vez de diminuir... Antes da primeira grande investida das forças policiais contra os manifestantes houve uma reunião secreta em que votaram não disparar contra a multidão que já ía nas 70.000 pessoas. O representante do partido deu depois ordem semelhante, tentando não perder a face. Foi aí que caiu a DDR, não foi em Berlim a 9 de Novembro.
Eu temo que por toda a Europa (ando a dizê-lo vai para 2 anos) este tipo de violência alastre sem travão, dada a dissolução entre o “Estado” e a “Nação”. O País NÃO PODE ESTAR MUITO MELHOR QUANDO AS PESSOAS ESTÃO MUITO PIOR. E enquanto estas bestas não perceberem isso estamos à beira do precipício que é Kiev – na orla da guerra civil, na margem da dissolução absoluta do contrato social – por culpa única e exclusiva dos que se apossaram ilegitimamente sob falsas promessas da máquina na do Poder.

Sergio Lira disse...

Upsss, a 1ª frase está digna de um qq político, desculpa lá... Começou por ser "não concordo cntg" e a edição deu naquela maravilha...

Anónimo disse...

É o texto mais esclarecedor que li até agora sobre a situação actual na Ucrânia.
Obrigada ao Prof. Rui Miguel Ribeiro! Aconselho a todos este blog.

Alexia Shpuy

Rui Miguel Ribeiro disse...

Caro Sérgio,

Não, não sou proponente de um banho de sangue em Kiev. Aquilo que procurei escrever, diria mesmo denunciar, é a visão dos opressores versus os coitadinhos que é sistematicamente veiculada pelos media ocidentais.
Quis dizer que muitos dos manifestantes são virulentos e perigosos e que vários dos seus líderes são instrumentalizados por potências estrangeiras que não a Rússia (que instrumentaliza outros).
Quis transmitir que o Yanukovych é um banana cujo fim já havia prognosticado neste blog a 31 de Janeiro.
Quis também dizer que o que foi permitido aos manifestantes é incompatível com um Estado funcional, repressivo ou não.
Quis finalmente partilhar a convicção que estes eventos ameaçam estilhaçar o país em fracturas geográficas, políticas, culturais e de interesses externos.
E embora não o tenha dito explicitamente, deste post pode inferir-se que quando a poeira assentar e o sangue for lavado, duvido que algo de muito bom advenha para os Ucranianos.
Quanto aquilo que dizes sobre a Europa (e Portugal), tens infelizmente razão.
Abraço

Rui Miguel Ribeiro disse...

Obrigado Alexia!

Foi dos comentários mais simpáticos e que mais me tocaram, especialmente por vir de quem veio :-)
Bem hajas!

Sergio Lira disse...

Sim, Rui, claro que há "manipulação" (tanto das actuações quanto das notícias). Claro que Kiev é palco de outros interesses que não os imediatos da população (ou do poder político instituído); claro que numa situação normal não se muda de instituições por motim e as "eleições" não se fazem de molotov na mão. Mas é exactamente aí que bate o ponto: quando o descontrole chega aqueles extremos não é certamente por causas menores, que ninguém se dispõe a morrer por dá-cá-aquela-palha. Nada "foi permitido" aos manifestantes como tu dizes (e aí discordamos): não havia maneira de os impedir, chegados onde chegaram, a não ser com um banho de sangue - de nenhuma outra maneira poderiam ser travados (independentemente das causas, dos interesses, das manipulações, e até a "razão" que lhes assistiria ou não). O que se passou em Kiev fez-me recordar excessivamente o filme "O último castelo" (The Last Castle - 2001) - também aí os condenados haviam sido legitimamente condenados, mas as condições subsequentes reverteram os pratos da balança moral e o "certo" e o "errado" parecem misturar-se de forma inaceitável: prisioneiros condenados, e bem condenados, não se revoltam - ou, se se revoltam, devem ser reprimidos, mesmo mortos... será? em definitivo e em absoluto? Se um desempregado português, há 3 anos sem emprego, sem meios de subsistência para prover à família, sem esperança, a ficar sem apoio social, sem idade para emigrar, excretado pelo seu País (que está muito melhor, note-se) der uma sova no Montenegro e um tiro no Passos Coelho comete crime, obviamente. Mas nenhum de nós olhará com uma réstia de benignidade tais actos extremos e tresloucados? agora multipliquemos isto por toda uma sociedade e teremos um motim social em que me não espantam catapultas improvisadas, e gadanhos afiados, e molotovs, e armas de caça, etc., etc.